Regras de negócio cliente X desenvolvedores


Em projetos de software, é comum que o cliente tenha ideias claras sobre o que deseja alcançar: “o sistema precisa fazer X, Y e Z”. O problema aparece quando essas regras de negócio são impostas de forma unilateral sem considerar a visão técnica, a experiência do time que vai construir a solução e as implicações práticas. Esse desencontro gera atrasos, custos escondidos, frustrações e, no fim, um produto que não atende plenamente nem a expectativa do negócio nem os critérios de qualidade técnica.


Este post explora por que isso acontece, quais são os impactos reais e como você, do lado do prestador ou do cliente, pode evitar que o projeto se torne um ciclo de “corrigir, adaptar e remendar”.


2. O Problema: Regras de Negócio Desacopladas da Realidade Técnica


Quando o cliente “diz como deve ser feito” sem escutar quem vai implementar, ocorrem sintomas como:

  • Especificações vagas, conflitantes ou tecnicamente inviáveis.

  • Requisitos que ignoram restrições de performance, segurança, escalabilidade e manutenibilidade.

  • Decisões de negócio baseadas em suposições não validadas (ex.: “vamos fazer assim porque sempre foi feito assim em papel”).

  • Falta de priorização clara (tudo vira “essencial”, o backlog se inchando).


Isso geralmente vem de duas fontes principais:

  1. Falta de canal de colaboração estruturado entre o cliente/área de negócio e o time técnico.

  2. Desconfiança ou desconhecimento mútuo: o negócio acha que “tecnologia é apenas execução”, e o técnico acha que “o cliente muda de ideia o tempo todo”.


3. Impactos Reais


a) Retrabalho e aumento de custo


Regras mal concebidas ou mal traduzidas para o software levam a ajustes contínuos. O que parecia “pequena mudança de negócio” vira refatoração profunda.


b) Entregas atrasadas


Sem validação técnica prévia, funcionalidades chegam com problemas de integração ou performance e são devolvidas para retrabalho.


c) Dívida técnica oculta


Atender regras mal definidas “do jeito rápido” pode funcionar no curto prazo, mas cria uma base frágil que complica futuras evoluções.


d) Experiência do usuário degradada


Regras inconsistentes ou não pensadas com cuidado técnico resultam em interfaces confusas, erros esporádicos e quebra de fluxo.


e) Risco de falhas graves


Em domínios regulados ou críticos (finanças, saúde, logística), uma regra interpretada errado pode causar quebra de conformidade, perda de dados ou falhas de negócio.


4. Como Evitar — Modelo de Alinhamento entre Cliente e Time Técnico


4.1. Workshop de Descoberta (Discovery) Inicial


Reúna stakeholders de negócio e técnicos. Mapeie:

  • Objetivos (por que a regra existe?)

  • Cenários reais de uso

  • Exceções e bordas

  • Restrições técnicas conhecidas


4.2. Modelagem Colaborativa (ex.: Domain-Driven Design / Ubiquitous Language)


Crie uma linguagem comum entre negócio e tecnologia: termos, entidades e eventos. Isso reduz ambiguidade nas “regras” e nos comportamentos esperados.


4.3. User Stories com Critérios de Aceitação Conjuntos


Em vez de “faz isso porque o cliente quer”, transforme regras em histórias do tipo:


Como [papel], quero [ação], para que [valor].
Critérios de aceitação: [lista validável construída junto].


Exemplo:

“Como gerente de pedidos, quero que o sistema impeça descontos acima de 20% sem autorização, para manter margens de lucro.”

Critérios: validação, log de autorização, notificação.


4.4. Grooming/Refinamento de Backlog com Participação Regular


Não é só uma sessão única. Regras evoluem. Ter reuniões periódicas permite ajustar, priorizar e detectar conflitos antes de implementar.


4.5. Governança de Regras de Negócio


Defina quem pode propor, aprovar e alterar uma regra. Use um documento (ou sistema) de versionamento de regras com histórico e justificativa:

  • Quem solicitou

  • Por quê

  • Quem validou tecnicamente

  • Data de vigência / alterações


4.6. Protótipos e Validação Rápida


Antes de codificar, valide a regra com low-fi: telas simuladas, fluxos em papel, “click dummies” ou até regras testadas manualmente em planilhas. Isso revela mal-entendidos cedo.


4.7. Escalada e Mediação de Conflitos


Crie um canal previsto para quando “negócio quer X, técnico diz que quebra algo importante”. Uma pessoa (product owner, arquiteto ou mediador) faz trade-offs explícitos: custo vs benefício vs risco.


5. Exemplo de Caso (Resumo de um Cenário Realista)


Contexto:

Uma ONG quer um sistema de distribuição de doações com a regra: “Priorize sempre os pedidos de municípios vizinhos.” O cliente define isso como regra absoluta sem considerar que a base de dados de localização está incompleta e que a rede pode ter latência alta.


Problemas iniciais:

  • A prioridade feita por geolocalização causava demora (cálculo em tempo real para todos os pedidos).

  • Alguns municípios não tinham dados padronizados, gerando inconsistência na “priorização”.

  • Não foi discutido como tratar empates ou exceções (ex: doações urgentes de longe).


Solução colaborativa:

  1. Workshop para entender “por quê” da prioridade (reduzir custos de logística e aumentar impacto local).

  2. Definiram uma regra refinada: “Para pedidos dentro de 30 km com dados válidos, aplique prioridade. Em caso de empate, use data de solicitação.”

  3. Criaram um cache de proximidade para performance e uma interface administrativa para corrigir municípios sem dados.

  4. Construíram testes automatizados que simulavam empates e falhas de geolocalização para garantir previsibilidade.


Resultado:

Regra de negócio foi respeitada, o sistema performou bem e o cliente entendeu os trade-offs porque participou da modelagem.


6. Checklist para Evitar o Erro de “Regras Impostas sem Escuta Técnica”

  • Fizemos um workshop inicial com negócio e técnico?

  • Transformamos a regra em user story com critérios de aceitação?

  • Existe uma linguagem comum definida (termos/entidades)?

  • A regra foi validada com protótipo ou simulação?

  • Houve análise de impacto técnico (performance, segurança, manutenção)?

  • O backlog foi refinado com a participação do cliente?

  • Existe governança para mudanças nessa regra?

  • Houve documentação da decisão e dos trade-offs?

  • Temos testes cobrindo os cenários esperados e exceções?


7. Boas Práticas de Comunicação

  • Use perguntas abertas: “Qual problema real essa regra resolve?”

  • Evite “faça assim porque sempre fizemos” — busque o por quê.

  • Dê visibilidade dos custos técnicos: “Fazer X dessa forma adiciona Y horas/complexidade.”

  • Proponha alternativas viáveis quando a ideia original criar risco.

  • Faça demo do impacto cedo, não apenas depois da implementação.


8. Conclusão


Regras de negócio são o coração do valor que um software entrega — mas, sem alinhamento com a visão técnica, esse coração pode bater fora de compasso. Conectar quem entende do problema (cliente/negócio) com quem entende da solução (time técnico) não é luxo, é necessidade. Projetos que incorporam esse diálogo desde o início reduzem retrabalho, ganham previsibilidade e entregam valor real de forma sustentável.


Se você está enfrentando resistência para estabelecer esse alinhamento ou quer formalizar esse processo no seu time ou com seus clientes, podemos ajudar a criar o fluxo, os templates e o acompanhamento necessários para que o próximo ciclo de desenvolvimento seja mais claro, mais rápido e menos doloroso.

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